Racismo nos condomínios: a realidade dos negros no cargo de síndicos

Síndicos mostram as dificuldades na gestão, mas são exemplos no combate ao racismo estrutural do país e trazem perspectivas de avanço na igualdade de direitos
â¨â¨O universo dos condomínios é plural, mas nem tanto em um recorte voltado aos síndicos negros. São poucos profissionais na área, mas muitos deles com casos de injúria racial e racismo marcados na carreira e na vida. O preconceito existe e o fato de Santa Catarina ser o estado mais branco da federação, com 79,9% da população branca de acordo com os dados mais recentes do IBGE, ajuda a explicar os ainda recorrentes casos. A população preta, parda, amarela ou indígena no Estado é de 20,1%.â¨
Mas o índice já foi maior como aponta a antropóloga Cauane Maia.â¨"O estado de Santa Catarina em 2005, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e do IBGE, apresentou uma taxa de 88,1% de pessoas autodeclaradas brancas e 11,7% negras (pretas e pardas). Já em 2015, os indicadores se modificaram para 85,2% e 14,4%, respectivamente”.
â¨Nos condomínios há perspectiva de melhora na igualdade de oportunidades por causa de bons exemplos vindos de síndicos que se impõem para combater o racismo. No entanto, os casos ainda existem e são vividos quase que diariamente.
O relato da vice-presidente da Associação dos Síndicos de Santa Catarina (Asdesc), Daiana Ilha, mostra a dificuldade de ser mulher e negra no cargo. â¨"Ao aplicar uma multa o condômino não aceitou, bateu na minha porta e começou a berrar ‘sua negra de b*’. Ameaçou minha família, eu fiz boletim de ocorrência e não levei adiante porque acabaram indo embora do condomínio", conta a atual corretora de imóveis sobre um dos episódios no condomínio em que administrava o condomínio Porto Caravelas, em Canasvieiras.
â¨Mas o que leva as pessoas a adotarem esse tipo de comportamento? O racismo estrutural como Silvio Almeida, filósofo do direito e presidente do Instituto Luiz Gama, exemplifica em seu livro de mesmo nome, não é somente um ato, mas um processo em que as condições de organização da sociedade reproduzem a subalternidade de determinados grupos que são identificados racialmente. Exemplo disso é o de, ao ver um síndico negro, achar que ele é o porteiro ou zelador e não o administrador do edifício.
â¨"A forma com que a gente pode combater o racismo estrutural é com a educação, o letramento racial. São as pessoas lendo autores negros, tendo conhecimento sobre a história da escravidão do Brasil e as mazelas deixadas desse período e como a população negra sofre violência até hoje. São tantos pontos que merecem ser tratados que a gente percebe que a sociedade ainda é muito ignorante ainda sobre esse assunto", aponta Caroline Vizeu, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB/SC.
â¨Mandato com o auxílio da políciaâ¨

Imagine ser obrigada a ter a Polícia Militar como apoio para gerir um condomínio. O mandato da síndica Tânia Regina da Silva, 57, no condomínio Residencial Ilhas do Norte, em São José, literalmente teve escolta policial na porta da administração. Mulher, síndica, negra e vinda de outro estado, a desconfiança e a falta de respeito fez com que ela tivesse que tomar tal atitude.â¨
"O meu primeiro mandato foi abaixo de polícia. Quase toda semana eu tinha que chamar a viatura porque chegavam homens e mulheres batendo na mesa, gritavam, e eu tive que me impor para que eles recuassem. Geralmente as pessoas pensam que por ser mulher vão gritar e me intimidar. Eles falam "eu pago teu salário então tens que fazer o que eu quero". Ainda não conseguem ver o síndico como representante legal do condomínio, trabalhando pelo patrimônio dele. Acham que você é empregado deles, aí quando se impõe chegam com essa atitude de você ser mulher, negra e não tem que falar nada. Tem muita gente com o racismo velado, quando aparece uma situação de conflito ele deixa o racismo aflorar ", aponta Tânia, que atua também como dona de um salão de beleza.
â¨Daiana Ilha não só esteve no papel de vítima de racismo como também teve de ser testemunha de outros. Hoje fora da sindicância, segundo ela por decisão pessoal, a realidade é dura. Os termos usados nos xingamentos ferem não somente no momento em que acontecem.â¨
"Tivemos uma situação com uma porteira negra e baiana. Uma moradora foi racista e xenofóbica, chamando ela de ‘macaca, vocês vêm da Bahia pra fazer negrice’. Algumas partes do caso ela conseguiu gravar, chamamos a polícia e a mulher não chegou a ser presa. E tudo isso foi somente porque ela não conseguia abrir a porta do bloco", relata.
â¨â¨Constrangimentoâ¨

Quem tem uma longa história em condomínios, como é o caso do hoje síndico profissional Nelson Lima que foi vigilante, zelador e porteiro, sente o peso do preconceito. As situação vividas, ainda hoje, são muitas, mesmo com atuação em mais de 15 condomínios na Grande Florianópolis.â¨
"A gente tira de letra, mas acontecem coisas estranhas. Eu tenho a minha empresa há muito tempo, estou sedimentado no mercado, e as pessoas acham que eu sou empregado da empresa. Eu ando uniformizado, atendo condomínio assim, e já cheguei em assembleia, em condomínio de alto padrão, e aconteceu de o morador que não me conhecia falar 'cadê esse baita síndico que nós temos?'. Aí ele olhou pra mim e perguntou: 'o teu patrão já está vindo para a assembleia?'. Pensa nas pessoas olhando pra ele e o presidente do conselho dizendo que o Nelson Lima era eu. Ficou uma situação constrangedora para ele, de não saber o que fazer e por ainda ter falado alto", conta.â¨
Nem todos conseguem manter a calma em situações como a relatada por Nelson, que demonstram como a questão é estrutural na sociedade. Renato de Souza, fotógrafo e editor de imagens, vive há 30 anos em condomínios e diz já ter vivido diversas situações de preconceito.â¨
"Quando eu morava em Coqueiros, uma vez eu estava descendo as escadas do prédio com os sacos de lixo para levar na lixeira e uma pessoa branca me parou e perguntou se eu era o zelador do prédio. Em outra oportunidade, tocaram na porta do meu apartamento e a minha ex-esposa abriu. A pessoa olhou para ela, que era negra, e perguntou se a dona da casa estava".â¨
Crimes contra funcionários e moradores
â¨Os crimes de injúria racial ou racismo são comuns em condomínios, já que são um reflexo do comportamento da sociedade. Alexandre Marques, que é advogado, consultor e professor de Direito Condominial, cita que o combate à discriminação também tem que partir dos gestores para ajudar a zerar os casos, como forma até de ensinar e punir.
"Os condomínios reproduzem o comportamento do cidadão lá fora e essa questão da agressividade e preconceito racial está presente também. O que os condomínios devem fazer é praticar as políticas de cidadania que você vê na sociedade, como conscientizar as pessoas a partir de campanhas internas e ser inflexível com os casos que se apresentarem. Os que se tornarem públicos ou de conhecimento da direção devem ser enfrentados com coragem, se for o caso levar até para assembleia e ratificar a sanção a ser imposta. O segredo é uma política de tolerância zero a essa mazela social que acomete a todos nós", garante.
Alexandre Marques, há 33 anos atuando na área condominial, reforça que as situações de preconceito, a não ser que haja alguma norma específica no regulamento interno, deve ser levado para a esfera criminal pelo ofendido. No entanto, o síndico não pode se isentar ao saber de alguma denúncia.
"A direção do condomínio deve agir firmemente se for algo envolvendo funcionários ou prestadores de serviço, é preciso chamar atenção. Se for entre condôminos, tentar mediar essa situação para que isso não ocorra. Dependendo da ofensa, o condomínio não tem como interferir diretamente. Se um morador ofende outro com discriminação, quem está legitimado a tomar uma medida é o ofendido", explica o advogado.
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Injúria Racial x Racismo
â¨A estrutura do preconceito vem desde o início da colonização e até hoje se mantém viva, seja por meio de expressões ou atitudes. Ter dito, pensado ou ouvido algumas das expressões a seguir demonstram como o racismo está no dia a dia: cor do pecado, não sou tuas negas, denegrir, a coisa tá preta, cabelo ruim, ter um pé na cozinha. Todas as expressões da frase anterior remetem à história que teve início com os escravos e possuem conotação racista e preconceituosa.
â¨A lei brasileira prevê detenção de três meses a cinco anos para os crimes de injúria racial e racismo. Eles são diferentes. A injúria racial pode ser exemplificada como uma ofensa direcionada a um indivíduo específico, já no crime de racismo a ofensa é contra uma coletividade, toda uma raça, não há especificação do ofendido.
- â¨É importante diferenciar sobre a forma de punição quanto aos crimes raciais. Quando a gente fala de crime de racismo ele não tem um prazo prescritivo, ou seja, pode ser denunciado a qualquer momento, ao contrário de injúria racial que tem um prazo de seis meses para que o ofendido registre uma ocorrência - explica Caroline Vizeu, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB/SC.
â¨O racismo estrutural na sociedade brasileira, por sinal, faz com que os casos de injúria sejam relevados por boa parte da população negra. A falta de instrução sobre o assunto torna-se um problema, pois os agressores não sofrem nenhuma punição se a denúncia não for realizada pela vítima.
â¨No crime de injúria é preciso registrar um boletim de ocorrência em alguma autoridade policial com maior detalhe possível e incluir na queixa que o agressor deva ser processado. No crime de racismo quem apura a conduta é o Ministério Público.
Crime de Injúria
O que é: Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro. Agravante em caso de violência ou vias de fato.
Pena: detenção de três meses a três anos, ou multa.
Crime de Racismo
O que é: Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: de um a três anos de detenção e multa.
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